por Fernando Limongi
Postado em 09/10/2021
Categoria: Debate
Em artigo publicado em Conjuntura Econômica, em seu número de setembro, Paulo Hartung, Marcos Mendes e Fábio Giambiagi¹ chamam a atenção para a deterioração do processo orçamentário verificada nos últimos anos. Neste texto ofereço uma versão modificada do mesmo argumento. Identifico a mesma deterioração, mas atribuo à omissão do Poder Executivo. A maior participação do Legislativo e, mais especificamente, medidas que visam garantir que a lei orçamentária seja executada de acordo com o texto aprovado (orçamento impositivo) não devem ser interpretadas como parte do retrocesso analisado pelos autores. O problema fundamental é o reforço do poder discricionário do relator que, pela última LDO, passou a ter a prerrogativa de propor gastos não previstos na proposta submetida pelo Executivo. Esta prática, contudo, só foi retomada com a anuência do próprio Executivo que, em última análise, abriu mão de imprimir sua própria marca aos gastos em investimentos.
Como todos sabem, o grosso das alocações feitas pelo orçamento anual não pode ser emendado pelo Legislativo. Fundamentalmente, o Congresso participa apenas da definição dos investimentos, a parte elástica do orçamento, aquela cuja execução depende da evolução das receitas. Assim, boa parte dos investimentos previstos na lei orçamentária acaba não sendo executado. Em não havendo recursos, o gasto não é autorizado. O Executivo, discricionariamente, por meio de decretos de contingenciamento e administração na boca do caixa pelos ordenadores da despesa, decidia com alto grau de liberdade quais dotações previstas na lei seriam executadas. Parlamentares gastavam boa parte de seu tempo em Brasília correndo pelos guichês para encontrar recursos autorizados para as emendas que haviam aprovado. Muitas vezes, recorriam a improvisação, pois sobravam recursos onde faltavam emendas.
A reação a este estado de coisas começou no governo Dilma, quando foram aprovadas as primeiras medidas visando implantar o orçamento impositivo. Deve-se ter em conta que o orçamento nunca é inteiramente impositivo. Se não há recursos, não há como se obrigar o Executivo a gastar. As modificações visavam tão somente diminuir os graus de liberdade do gestor para determinar que partes do orçamento de investimento que viriam a ser executadas. Os parlamentares obtiveram a garantia que as emendas que aprovam seriam tratadas como devem ser tratadas dotações contempladas em uma lei, isto é, buscaram impedir que fossem remanejadas e jogadas daqui para lá e de lá para cá ao bel prazer do Executivo.
Nestes termos, as medidas visando a implantação do orçamento impositivo podem ser vistas como positivas, pois garantem maior transparência e controle à peça orçamentária como um todo. Com as medidas aprovadas, Legislativo e Executivo amarraram suas mãos. Se, como muitos acreditam, o Executivo ‘comprava’ apoio por meio da liberação de emendas, a aprovação destas medidas contribuiria para diminuir seu poder. O fato é que o Executivo perde boa parte da discrição com que contava para abrir e fechar as torneiras que deputados e senadores dependeriam para irrigar suas bases e obter votos e a lei orçamentária aprovada ganha maior força.
Em última análise, se esta leitura das modificações adotadas estiver correta, o orçamento impositivo e as demais modificações constitucionais aprovadas já no governo Bolsonaro, não têm impacto sobre o teto de gastos e, mesmo, para o tamanho do déficit das contas do governo. A possibilidade de recorrer a decretos de contingenciamento não foi vedada. Em não havendo recursos, não se faz o investimento e pronto.
O total de gastos não é afetado, mas sim a distribuição ou contribuição relativa de cada um dos Poderes. A balança passa a pender para o lado do Legislativo. Penderá tanto mais quanto maior for o volume de cortes, quanto menor for a parcela dos investimentos efetivamente executados. Em um cenário extremo, hipotético, seria possível que 100% dos investimentos acabassem determinados pelo Legislativo.
Ainda que não vislumbrem cenário tão radical, me parece que esta é a principal preocupação de Hartung, Mendes e Giambiagi, derivando daí que quanto maior for a parcela definida pelo Legislativo, tanto pior será a qualidade do gasto e de seu controle pela sociedade. A conclusão, contudo, segue de premissas não explicitadas, a de que parlamentares emendam o orçamento livremente e com o objetivo único de atender suas clientelas eleitorais.
Não há dúvidas que políticos(as) profissionais querem votos e, para tanto, se lhes for dada completa liberdade para alocar recursos, estes serão alocados para beneficiar suas bases eleitorais. Se estas forem decisões feitas individualmente, sem um agente coordenador, o resultado será para lá de ineficiente.
Contudo, deve-se levar em conta que parlamentares não gozam de total liberdade para alocar recursos. Emendas só são aceitas em programas previamente criados e previstos pela proposta original do Executivo. Isto é verdade inclusive para as emendas individuais. A alocação feita pelo Congresso é, portanto, uma realocação e, mesmo esta, é limitada por normas que vedam transposições entre grandes áreas de gasto.
Por exemplo, o montante dos gastos destinados a saúde sobre o total de investimento é definido na proposta original, uma reponsabilidade, portanto do Executivo. No frigir dos ovos, as emendas individuais dos parlamentares definem os locais em que serão feitos os investimentos, se nesta ou naquela cidade.
Em outras palavras, a participação do Congresso no processo orçamentário não leva à sua desfiguração. Será assim, se, e somente se, o Executivo se eximir do trabalho de coordenação e definição de prioridades.
A discussão sobre os efeitos da participação do Congresso sobre o gasto público é alimentada por uma série de preconceitos que pedem revisão. Não é incomum que, de forma direta ou indireta, esta participação seja tida como uma evidência a mais da sobrevivência de práticas políticas clientelistas e tradicionais. Daí a tomar as emendas como ilegítimas é um passo.
Por certo, não há garantias de que os parlamentares façam as alocações mais justas ou eficientes, seja qual for o parâmetro que se use para avaliar uma ou outra coisa. Sempre é possível encontrar exemplos aberrantes para mostrar a apropriação privada, ineficiente e excessivamente localistas dos recursos alocados por meio de emendas parlamentares. Entretanto, por mais fortes que sejam estes exemplos, não se pode concluir que quanto maior a parcela dos investimentos definidos por parlamentares, maior a captura do orçamento por ‘interesses privados paroquiais’.
O recurso a fórmulas prontas permite contornar o problema de fundo, a saber, a da ausência de critérios objetivos para definir a alocação de recursos escassos. Tudo se passa como se soubéssemos qual seria a alocação ótima, eficiente ou justa dos recursos escassos a serem alocados pelo orçamento. Pior ainda, assume-se que a proposta sobre as quais os parlamentares se debruçam têm estas características, que o orçamento enviado pelo Executivo é superior ao que sai do parlamento. São estas premissas não explicitadas que levam a se falar em deformação, desfiguração e perda de coerência da peça enviada. Ora, o Executivo não pode ser equiparado a um planejador onisciente que tudo sabe, que é capaz de coletar as informações necessárias para saber se os recursos disponíveis para reformar unidades básicas de saúde devem ser alocados na cidade x ou y. Quais as informações o Executivo, ou, para ser mais exato, o burocrata sentado no Ministério dispõe para tomar esta decisão?
Parlamentares, é preciso reconhecer, podem ter mais informações do que burocratas e, mesmo, técnicos. Eleições são informativas. Se parlamentares não fizerem bom uso das informações de que dispõem, nas eleições seguintes, serão punidos pelos eleitores.
Emendas individuais, em última análise, definem apenas o local em que serão aplicados os recursos previamente separados para este ou aquele programa pelo Executivo. Burocratas não têm mais e melhores informações do que políticos. Os deputados detêm informações relevantes que devem ser incorporadas ao processo decisório. A desqualificação automática das demandas dos detentores de mandatos desqualifica e deslegitima o princípio do governo representativo.
Tudo quanto estou afirmando é que a maior participação do Congresso na definição dos gastos em investimento não significa captura por interesses escusos e ilegítimos, ou mesmo a prevalência das preocupações paroquiais. Isto pode ou não ocorrer. A relação não é automática. Além disto, nem todas as medidas analisadas por Hartung, Mendes e Giambiagi diminuem a qualidade, a lógica coletiva e o escrutínio público da peça orçamentária. Pelo contrário. Parte delas caminha justamente nesta direção, diminuindo a discricionaridade, o que é o mesmo que dar valor a lei orçamentária.
Obviamente, se o Executivo se omite, se o Executivo abre mão do seu papel, se o Presidente e os Ministros não definem prioridades, se não participam ativamente da tramitação do projeto de lei orçamentária, se abdicam das suas prerrogativas, o Legislativo fará uso das suas prerrogativas livremente, definindo suas próprias prioridades. E é isto que vem ocorrendo neste governo. O Executivo não se interessa pela alocação de recursos, não tem um programa, um projeto. Largou esta tarefa para o Congresso que, obviamente, não tem como assumir este papel.
Das modificações comentadas por Hartung, Mendes e Giambiagi, a verdadeiramente preocupante diz respeito à reintrodução das emendas de relator. Aqui, de fato, há um claro retrocesso, uma volta, como notam aos autores, às práticas vigentes no reino de João Alves e os chamados anões do orçamento. O retrocesso, vale notar, veio por meio de dispositivo aprovado na Lei de Diretrizes Orçamentária de 2020. O Executivo poderia ter vetado o artigo da lei que restaurou a prerrogativa. Não o fez. Mais, o Executivo poderia ter vetado as emendas que o relator introduziu na lei orçamentária, criando despesas em programas não previamente previstos. Novamente, não o fez. Portanto, a conclusão óbvia é que o retrocesso conta com o apoio do Executivo, que é parte da sua omissão, da sua irresponsabilidade política. O governo Bolsonaro, para dizer de forma clara e direta, não tem a menor intenção de assumir a direção do orçamento, de definir prioridades. Delegou esta função, passou adiante.
Contudo, é preciso entender que não delegou a tarefa de definir as prioridades orçamentárias aos legisladores, ao Congresso como um todo. As emendas individuais têm dotações uniformes, isto é, tratam todos os membros do Legislativo como iguais, reservando a cada um a mesma parte do bolo. As emendas de relator são uma forma de escapar do universalismo, de beneficiar uns poucos. O relator do orçamento ganhou poder discricionário, pode agradar amigos e punir inimigos.
Para resumir. O problema não é o Congresso. O problema é o Executivo, sua omissão e irresponsabilidade crônica. O censo demográfico de 2021 não foi incluído no orçamento para atender as demandas dos parlamentares ou por falta absoluta de recursos. O governo decidiu que tinha outras prioridades. Passou a hora de virar o disco, de alterar o discurso e abandonar chavões. A culpa está do outro lado da rua. A complacência tem limites.
[1] - http://www.fgv.br/mailing/2021/conjuntura-economica/09-setembro/revista/8093427/21/#zoom=z
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