por Danilo Medeiros
Postado em 04/10/2022
Categoria: Coluna Valor
Texto originalmente publicado pelo jornal Valor Econômico em 09/05/2022
Golpes militares tornaram-se raridade ao redor do globo nas últimas décadas, mas isto não significa que as erosões e quebras democráticas deixaram de existir. Agora elas se dão sobretudo por um processo em que políticos e partidos eleitos legitimamente pelo voto popular atacam princípios fundamentais da democracia para se manterem no poder indefinidamente. O autogolpe pode se dar por caminhos e estratégias variadas, mas costuma ser um processo lento e gradual e que culmina com a supressão da competição eleitoral e da oposição ao governo, dois pilares básicos da democracia. Exemplos não faltam. Só para ficarmos no século XXI, temos Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, Putin na Rússia, Chávez e Maduro na Venezuela e a tentativa fracassada de Trump nos EUA.
Bolsonaro flerta com esse caminho ao questionar a lisura do processo eleitoral brasileiro e afirmar que pode não aceitar os resultados que sairão das urnas em outubro de 2022. Não só. Os constantes ataques ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal, a exaltação da ditadura militar e os discursos de ódio destinados a opositores ao longo de seu mandato e de sua vida política não deixam dúvidas que este é um presidente (e candidato à reeleição) que busca minar a confiança na competição eleitoral e na própria democracia.
O maior exemplo do estrago que já foi feito por Bolsonaro é a incerteza da posse de qualquer candidato eleito nas eleições de outubro que não seja o atual presidente. Numa democracia, há incerteza antes do pleito sobre quem vencerá uma eleição, mas há certeza de que qualquer que seja o candidato vencedor, os perdedores aceitarão pacificamente a derrota. Bolsonaro tem feito intencionais esforços para que os eleitores brasileiros cheguem às urnas em outubro sem essa certeza.
Esse cenário é potencializado por um contexto de polarização política no Brasil, no qual o atual presidente adota um comportamento radical e constantemente demonstra seu desprezo pela democracia e suas instituições. Dado que esta conjuntura não deve se alterar até as eleições deste ano, o que podemos esperar do comportamento dos políticos, dos eleitores e do futuro da democracia brasileira?
Estudos conduzidos pelo cientista político Milan Svolik mostram que em sociedades politicamente polarizadas, mesmo aqueles eleitores que se dizem comprometidos com valores democráticos votam em políticos que apoiam medidas autoritárias. Isto tende a ocorrer sobretudo se uma potencial mudança de voto contrariar seus interesses econômicos, suas posições políticas ou suas lealdades a uma liderança ou a um partido. O abandono simultâneo de princípios democráticos por políticos e eleitores pode resultar em crises políticas e subversão do regime.
Bolsonaro não precisa ter lido os trabalhos de Svolik para calcular que a polarização lhe oferece a oportunidade de ameaçar a competição democrática e não ser punido por eleitores que não estão dispostos a pagar o preço de votar em um candidato ou partido que rejeitam. É esperado, então, que ele continue a fomentar e apostar na tensão política, no conflito com outros poderes, no ataque a adversários e no sentimento anti-PT.
Já os demais candidatos viáveis eleitoralmente devem apresentar plataformas políticas mais próximas das preferências do eleitor moderado, pois simplesmente defender a democracia não parece ser a melhor estratégia para conquistar votos - como já não foi em 2018 e como sugerem as pesquisas de Svolik. Minimizar os efeitos da polarização, afinal, é o caminho que restou à elite política que faz oposição ao governo Bolsonaro, a mesma que ajudou a alimentar o conflito político.
Uma vez definidas as candidaturas, muitos eleitores enfrentarão um dilema: votar numa chapa distante de suas preferências imediatas - mas que não apresenta riscos à democracia - ou reeleger um presidente que flerta com o autoritarismo. Alguns ficarão com a segunda opção, pois não estão dispostos a abandonar suas preferências ideológicas ou suas lealdades político-partidárias em prol de minimizar as chances de erosão do sistema que temos hoje no país. Não sabemos exatamente quantos serão os eleitores a fazerem essa escolha, mas o futuro da democracia no Brasil talvez esteja nas pontas de seus dedos